O Portão do Esterco

Caminhar pelas ruas de Jerusalém é como mergulhar nas páginas de um best-seller – um livro de ação histórico, cheio de romance e guerra. Por isso, as vezes precisamos dar uns passos para trás. Afinal, abrir mão da procura por respostas exatas cria espaço em nós para que nos percamos no enredo da cidade. Por fim, descobrimos que as lendas e as imaginações guardam segredos profundos: verdades que não cabem dentro de meros fatos. Uma de minhas lendas favoritas gira em volta do portão do Esterco – um dos portões de entrada na cidade antiga.

O Portão Histórico

A primeira vez que vemos uma menção do portão do Esterco, é no livro de Neemias – quando o povo judeu voltando do exílio na babilônia reconstrói as muralhas da cidade de Jerusalém.

“A porta do Vale foi reparada por Hanum e pelos moradores de Zanoa. Eles a reconstruíram e colocaram as portas, os ferrolhos e as trancas no lugar. Também repararam quatrocentos e cinqüenta metros do muro, até a porta do Esterco.” Neemias 3:14

Neemias chegou em Jerusalém por volta do ano 444 A.C. – e se este portão estava na lista de edificações reconstruídas, pode-se presumir que ele tenha estado presente antes do exílio – quando o Templo de Salomão ainda estava de pé.

De fato, precisa-se dizer que esse nome charmoso que recebeu o portão soa um pouco melhor em Hebraico. O nome do portão é “שער האשפות” – e seria melhor traduzi-lo como “Portão do Lixo”. É provável que ele tenha recebido este nome em particular por ser o portão mais próximo do monte do templo, por onde os sacerdotes removiam o lixo e as cinzas dos sacrifícios antigos – que eram despejados no vale de Hinom, localizado a poucos metros dali.

Depois desta menção no livro de Neemias, registros históricos confiáveis desaparecem. É possível que o portão tenha evoluído junto com as muralhas da cidade, que mudaram de tamanho e posição inúmeras vezes ao longo dos séculos.

O Portão Moderno

Evidências concretas sobre o portão ressurgem no século XVI. Entre 1537-1541, o Sultão Otomano Suleiman o Magnífico reconstruiu as muralhas da cidade antiga. O portão do esterco, uma das nove portas da cidade, era a mais insignificante delas. Uma abertura estreita e cumprida, por onde passaria não mais do que um jumento. Entretanto, com o passar dos anos a população da cidade cresceu. Assim, cresceu o comércio entre aldeias ao sul e a cidade. Além disso, durante os meses de verão os poços de água na cidade não davam conta da demanda. E o acesso mais rápido à Fonte de Gihon, próxima do tanque de Siloé, era passando por este portão.

Alguns séculos passaram até que em 1952, o governo jordaniano – que agora dominava a região – determinou que o portão fosse alargado para permitir a passagem de carros. Finalmente, depois de 1967 com a reunificação de Jerusalém sob domínio israelense, o portão do esterco passou por mais algumas reformas, e recebeu sua estrutura atual. Por ele passam uma infinidade de turistas e moradores locais em seu caminho para o muro das lamentações – o Kotel.

Esses são os fatos. Eles desfrutam do consenso da maioria dos pesquisadores e arqueólogos. E são, sem dúvida, de interesse de leitores curiosos como você e eu. Agora deixemos os fatos de lado, para que possamos mergulhar nas fábulas que cercam o Portão.

A lenda

No ano de 636, o Califa Omar – sucessor do profeta Maomé no comando do recém-nascido Islã – alcançou a Cidade Santa. As forças bizantinas na cidade não foram capazes de resistir o longo cerco, e o Patriarca de Jerusalém – Sofrônios – rendeu a cidade em 638. Logo após a vitória, Omar saiu em uma grande passeata de celebração pela cidade. Eventualmente, ele e seus soldados em festa se aproximaram de uma grande esplanada, mal cheirosa e coberta de lixo.

A velhinha

Na distância, Omar viu uma senhora muito idosa, curvada sob o peso de um grande saco cheio de lixo. Pela expressão de esforço, ele percebeu que havia vindo de longe, talvez do outro lado da cidade. Agora, como qualquer cidade nesta época, pilhas de lixo ao ar livre estavam por todos os lados. Jerusalém em particular tinha a fama de ser uma cidade particularmente suja, e seu passeio até agora havia comprovado que isso era verdade. Por que tanto esforço dessa senhora para lançar seu lixo justamente aqui?

“Senhora, permita que meus soldados te ajudem. Você não precisa carregar esse peso” disse Omar, que era um homem justo e caridoso, a pesar de ser um guerreiro feroz. A velinha sorriu, levantou a palma da mão direita como quem diz não, e respondeu: “Desde os dias dos romanos nós cristãos temos uma tradição: trazemos nosso lixo para este lugar aqui em Jerusalém. Minha avó já dizia que quem deposita aqui seu lixo, ganha uma grande recompensa no céu. Muito obrigado, mas enquanto eu puder caminhar, farei esse esforço para agradar a Deus”.

As moedas de Ouro

“Que curioso”, pensou Omar. Afinal, ele bem sabia que coisas assim geralmente tinham um propósito. Estátuas, arcos, prédios e até mesmo lixo eram o “Instagram” do mundo antigo. Sem dúvida havia algo além do óbvio aqui. Omar ordenou que seus soldados removessem o lixo. Depois de algum tempo, ele viu que seus soldados não mereciam celebrar a vitória desta forma. Era muito lixo, a final de contas. Então, Omar pediu que os soldados espalhassem alguns sacos de moedas de ouro entre o lixo. Outros soldados foram encarregados de espalhar a notícia entre os cristãos na cidade. E assim, exatamente como ele havia previsto, os cristãos – pobres e miseráveis que eram – começaram a vasculhar pelo lixo em busca das moedas. Em poucas horas, uma grande parte do lixo havia sido removido.

Debaixo de séculos de dejetos e sujeira, Omar agora podia ver o topo de uma pequena montanha – e sobre ele uma superfície de pedra branca. Seus olhos se encheram de brilho ao perceber que aquela era a Pedra Fundamental. Os judeus diziam que dela, o mundo inteiro havia sido formado. Aquele era o Monte Moriá, onde o antigo templo dos judeus ficava. Era o local sagrado, sob o qual o Profeta havia contado. Ainda tomado de emoção, Omar olhou em volta. Na descida do monte, ao sul, um pequeno portão havia sido revelado depois que todo aquele lixo foi removido. A partir desse dia, o portão foi batizado de “Portão do Lixo”, mantendo assim a memória da sabedoria de Omar que soube procurar pelo sagrado em baixo do lixo.

Mais profundo que meros fatos

Acho essa lenda incrível. Historicamente, sabemos que a região do monte do templo foi sim transformada em depósito de lixo pelos cristãos bizantinos. No entanto, é improvável que o próprio Omar tenha estado em Jerusalém. Talvez algum de seus generais. Mas, como eu já disse, isso é uma fábula, que aparece inclusive numa versão em que todo esse enredo é relacionado ao tal Sultão Suleiman no século XVI (afinal, uma boa história pode ser duplicada). No entanto, há algo muito válido aqui para observar. A humanidade – eu e você – tem uma tendência a despejar lixo naquilo que é sagrado para os outros. Na lenda, nós vemos isso duas vezes: A primeira com os cristãos lançando seu lixo no local mais sagrado para os Judeus, como evidência da vitória do Cristianismo sobre o Judaísmo. A segunda, no tom condescendente da narrativa, tratando os cristãos como miseráveis e inferiores.

Agora, o ponto válido aqui é que todo aquele lixo de competição e disputa religiosa encobriam algo que até os dias de hoje é sagrado para as três religiões. A moral da história, caros amigos, é que ao despejarmos nosso lixo no sagrado dos outros, o “nosso” sagrado acaba ficando coberto de sujeira também.

Caminhando por Jerusalém fica impossível de ignorar tanta história de maldades cometidas em nome de Deus. Em todas as épocas, por todas as culturas – difícil nomear um inocente. E acho que isso abre para nós uma oportunidade única. De redimir anos e anos de injustiças através de algo tão simples quanto a gentileza e a tolerância. Quem sabe no final a gente descubra que debaixo de todo o lixo das nossas desavenças, existe um chão, sagrado, para todos.

 

[Leia mais sobre a importância do muro das lamentações para o Islã]

 

Rodrigo Autor

Vive em Israel desde os 18 anos. Músico, podcaster e guia, é apaixonado por comunicação, e por encontrar nas histórias e tradições antigas verdades que sejam relevantes para o hoje. Casado com a Alina e pai do Stav.

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4 Comentários



  1. Mt.boa essa história , mas, muito mais importante é a definição do que é o portão do lixo, para quem não conhece a cidade e nem o templo .
    Obrigado.

  2. Que bom, que vc se enteressou por esse assunto e escreveu pra nós..Estava Lendo a Bíblia e decidi pesquisar um pouco mais ..Obrigada

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